As mulheres, nos anos 60 jogaram fora seus soutiens buscando um caminho de liberdade. Hoje, os serviços públicos ainda colocam “espartilhos” nelas dificultando seus acessos ao tratamento de uso de substâncias. Clarissa, no seu texto “OFICINA DE BELEZA REALIZADA COM MULHERES NO CAPS AD DE RIBEIRÃO PRETO-SP”, nos mostra a necessidade de considerarmos que as mulheres “são socializadas pelas relações afetivas, e que estas relações têm um grande impacto no consumo de substâncias…”. Abra o “espartilho” que você colocou… pense sobre a importância dessa situação lendo o texto apresentado e comente no nosso Blog.
Por muito tempo, os estudos sobre o uso de substâncias focaram principalmente na população masculina, e os serviços foram planejados com esse grupo como alvo principal. As mulheres só recebiam a atenção dos pesquisadores e profissionais quando eram gestantes devido a discussão do possível impacto do consumo de substâncias no feto.
Com o aumento do consumo de bebidas alcoólicas nos países industrializados, o surgimento dos estudos feministas e a crescente inserção das mulheres no mercado de trabalho (tornando-as mais visíveis para as políticas públicas), elas passaram a atrair mais a atenção dos pesquisadores em relação ao consumo de substâncias (Ahlstrom, 1995).
Entretanto, até hoje, vemos que os Centros de Atenção Psicossocial – álcool e drogas (CAPS-ad), referência no cuidado de pessoas com problemas relacionados ao uso problemático de substâncias, ainda são muito voltados para o atendimento de homens, algo que acaba sendo naturalizado em muitos destes equipamentos.
Nosso grupo de pesquisa, o Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicopatologia, Drogas e Sociedade (LePsis-USP), tem conduzido diversos estudos sobre essa temática. Entrevistamos profissionais de CAPS-ad de todas as regiões do Brasil e, com raras exceções, o relato é de um serviço voltado ao público masculino. Por outro lado, estudos epidemiológicos destacam o aumento do número de mulheres que fazem uso problemático de substâncias, e há uma vasta literatura que relata o sofrimento dessas mulheres, muitas das quais são mães e perdem rapidamente a guarda de seus filhos.
Onde estão essas mulheres? Por que elas não chegam aos serviços especializados? Por que os serviços têm naturalizado o atendimento exclusivamente masculino?
Hoje, sabemos que as mulheres enfrentam desafios específicos ao acessar os serviços de saúde, como o estigma associado ao uso de substâncias, a falta de apoio familiar e o medo de perder a guarda dos filhos. Essas barreiras tornam ainda mais difícil para elas procurar ajuda, o que reforça a necessidade de uma abordagem diferenciada.
Observamos que, quando o serviço naturaliza esse espaço como masculino, atribui às mulheres a responsabilidade por não procurar ou aderir ao tratamento, sem refletir sobre o tipo de cuidado que está oferecendo. Não se cria uma ambiência adequada para as mulheres, como oferecer, por exemplo, grupos exclusivos para elas. Muitas vezes, essas mulheres ficam inibidas em grupos mistos, especialmente aquelas com histórico de abuso físico e sexual, geralmente cometido por homens.
Portanto, percebemos que os serviços precisam criar um ambiente acolhedor para receber essas mulheres. Em nossas conversas com profissionais do Brasil e do exterior e em nossas visitas aos serviços, observamos que a participação das mulheres no tratamento não ocorre de forma natural. É necessário que o serviço esteja preparado para isso e passe a mensagem de que ali é um espaço onde serão acolhidas. Os serviços que conseguem atender mulheres geralmente reservam espaços específicos para elas, como grupos de acolhimento e terapêuticos exclusivos para mulheres. Atividades e grupos só de mulheres valorizam o apoio entre pares, criando um espaço seguro e solidário para que compartilhem suas preocupações e experiências, sem serem julgadas. Alguns serviços concentram diversas estratégias terapêuticas para mulheres em um dia da semana, de modo que, nesse dia, haja mais mulheres do que homens no serviço, permitindo que elas se sintam mais à vontade. Os profissionais também precisam estar atentos para investigar situações de violência, acolhê-las em suas dores e ajudá-las a lidar com elas. Vale lembrar que as mulheres são socializadas para relações afetivas, e que essas relações têm um grande impacto no consumo de substâncias e em suas vidas, sendo necessário abordá-las adequadamente (Pinto, Corradi-Webster, 2023).
É igualmente importante estar atento à maternidade e conversar bastante sobre esta questão, oferecendo apoio às mulheres que são mães. Este apoio precisa auxiliá-las a navegar por outros setores, como o sistema judiciário, assistência social e educação (Arruda, Guilger-Primos, Pinto, & Corradi-Webster, 2024). Outra questão relevante é ter no serviço um espaço voltado para o acolhimento dos filhos, desde bebês até adolescentes. O CAPS-ad de Ribeirão Preto organizou um espaço para troca de fraldas, berços para bebês, brinquedoteca e uma equipe organizada para cuidar das crianças durante o atendimento das mães (Corradi-Webster, Arruda, Marchini, 2023). Outros serviços também disponibilizam notas e cartazes abordando temas importantes para as mulheres, como a distribuição de absorventes. A discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos é igualmente crucial, para orientá-las e emponderá-las a exercer seus direitos.
Também é essencial adotar uma abordagem interseccional que considere como raça, classe social, orientação sexual e identidade de gênero influenciam as experiências das mulheres que usam substâncias. Sem essa compreensão, os serviços correm o risco de não atender adequadamente às diversas necessidades das mulheres. Muitas mulheres que chegam ao CAPS-ad não têm renda; portanto, o trabalho em rede para auxiliá-las a conseguir benefícios sociais, realizar cursos de capacitação e se inserir no mercado de trabalho é fundamental.
O Estado não pode se fazer presente na vida dessas mulheres apenas no momento de retirar a guarda de seus filhos; é necessário que esteja presente auxiliando-as a lidar com a violência, a marginalização e as dificuldades impostas pela desigualdade de classe, que muitas vezes são mais devastadoras do que o próprio uso de substâncias. Políticas mais inclusivas e sensíveis ao gênero, que reconheçam essas questões estruturais, são essenciais para melhorar significativamente a eficácia do atendimento, garantindo que as necessidades das mulheres sejam tratadas como prioridade.
No caso das mulheres mães, é preciso também lembrar que ao cuidar da mãe, estamos cuidando das crianças, fortalecendo as famílias e promovendo um ambiente mais saudável para todos. Para que as políticas públicas sejam verdadeiramente eficazes, a abordagem interseccional deve ser diretriz central em sua formulação, assegurando que as múltiplas identidades e experiências das mulheres sejam reconhecidas e atendidas de maneira integrada e sensível.
Somente dessa forma poderemos construir serviços que acolham, capacitem e transformem a vida das mulheres, auxiliando-as a superar os desafios impostos pela violência, pobreza e exclusão social, e a alcançar uma vida plena e digna.
A questão que fica é: se a mulher não adere ao tratamento oferecido, a responsabilidade é exclusivamente dela, ou deveríamos investir em criar oportunidades mais atrativas para ela?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Ahlstrom, S. (1995). Cultural differences in women's drinking. Contemporary Drug Problems, 22(3), 393–451.
Pinto, A. L. L., & Corradi-Webster, C. M. (2023). Women, intimate relationships and drug use: Experiences and meanings. Estudos de Psicologia, 40, Article e220130. https://doi.org/10.xxxxxx/xxxxxx (substitua pelo DOI correto, se disponível).
Corradi-Webster, C. M., Arruda, E. P. T., & Marchini, G. P. O. (2023). Maternidade e uso de drogas: Considerações sobre o cuidado. In P. B. Hochgraf & S. Brasiliano (Orgs.), Álcool e drogas: Uma questão feminina (1ª ed., pp. 99–110). RED.
Arruda, E. P. T., Guilger-Primos, C. P., Pinto, A. L. L., & Corradi-Webster, C. M. (2024). Intervenções de cuidado para mulheres mães, com uso problemático de substâncias: Revisão integrativa da literatura. Caderno Pedagógico, 21(9), 1–35. https://doi.org/10.54033/cadpedv21n9-123
SOBRE A AUTORA:
Clarissa M. Corradi-Webster: Graduada em Psicologia, Mestre em Saúde na Comunidade e Doutora em Psicologia. É Professora da Universidade de São Paulo (USP), Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Departamento de Psicologia; e Coordenadora do LePsis (Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicopatologia, Drogas e Sociedade).
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