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RECAÍDA E RECURSIVIDADE – DIFERENTES OLHARES PARA UM MESMO FENÔMENO?

O que significam os termos “recaída” e “recursividade”? Nestes termos estão contidas nossa posição de abstinência total ou da consideração que temos pelos usuários de substâncias? No texto “Recaída e Recursividade: diferentes olhares para um mesmo fenômeno?”, nossa companheira Rossana Rameh apresenta uma pesquisa que nos mostra este caminho de reflexão. Esta publicação já aconteceu em junho de 2020 no nosso Blog. Vamos reapresentá-la para que você possa ler e comentar. 


Desde que nos deparamos no processo do meu doutoramento na Medicina Preventiva da UNIFESP (2013-2017) com as discussões e reflexões acerca do constructo teórico/clínico da “recaída”, venho tentando compreender melhor sobre tal questão, especialmente a respeito da insuficiência desta concepção biomédica e reducionista.  Consequentemente, surgiu a defesa do uso do termo “recursividade”, pois chegamos à conclusão que o conceito de “recaída” não se associa acertadamente ao cuidado das pessoas que usam drogas, à luz da Redução de Danos (RD).


Quando do objeto de pesquisa - “recaída no uso do crack” -, pudemos ampliar as reflexões em relação a quaisquer substâncias psicoativas, visto que, embora os tratamentos disponíveis tragam uma diminuição da gravidade dos problemas psicossociais causados pelo uso abusivo ou problemático de drogas, nenhum tratamento conseguiu “resolver” a “recaída” no seu sentido implícito: haja vista que só recai quem parou de usar!


Assim, buscando ampliar o conhecimento sobre o tema, a tese, que foi de caráter qualitativo, teve como objetivo investigar o fenômeno da “recaída” junto às pessoas que abusavam do crack e que estivessem em fase final de tratamento, mas também que vivenciaram episódios de “recaídas” para perguntarmos sobre os motivos desencadeadores desse processo.


O campo da pesquisa se deu em três espaços de cuidado: os Centros de Atenção Psicossociais em álcool e outras drogas (Caps AD), as Comunidades Terapêuticas (CT) e as Clínicas Médicas (CM). Apesar de não ser o foco da pesquisa, foi impressionante observarmos, enquanto dados secundários, que o proibicionismo e o antiproibicionismo, e também modelos diversos de tratamento transpassavam os espaços que teoricamente não seriam afeitos àquele paradigma. Assim, nos deparamos com Caps proibicionistas e com CT’s antiproibicionistas, Clínicas Médicas psicossociais e Caps biomédicos. A incongruência teórica entre as práticas foi algo que acabou sendo muito observado (Rameh-de-Albuquerque, 2017).


Entrevistamos 120 pessoas divididas igualmente entre Recife - PE e São Paulo – SP; considerando-se também as regiões metropolitanas. As categorizações que emergiram das narrativas dos entrevistados foram divididas em três blocos temáticos: motivos associados às pessoas (MP), motivos associados à droga (MD), motivos associados ao ambiente (MA) (Rameh-de-Albuquerque, 2017). Destes, as motivações mais citadas, pertenceram à categoria dos MP, sendo mais expressivas as dificuldades e/ou inabilidades das pessoas em lidarem com suas emoções, reduzindo a compreensão hegemônica de que os motivos associados à droga são o maior fator para “recaída” (Rameh-de-Albuquerque e Nappo, 2018).


Outro destaque revelado foi justamente o que coloca o conceito de “recaída” em cheque: inapropriado para a compreensão do fenômeno da repetição à luz da Redução de Danos. Quando captamos a Teoria da Complexidade (Maturana 1980, Morin, 2000), para pensarmos sobre o fenômeno, podemos considerar o princípio da recursividade como ponto de partida fundamental a um outro olhar sobre esse processo.


Observamos que a maioria dos autores que estudam a “recaída” ainda trabalha com o conceito de modo linear. Mesmo aqueles que não esperam a “recaída” como um fenômeno comum e que estudam e trabalham com a redução de danos findam por se referir às pessoas que usam drogas como àqueles que “recaem” (Rameh-de-Albuquerque, 2017). Pois bem, se na Redução de Danos as pessoas podem fazer escolhas em minorar seus problemas decorrentes do uso de drogas, sem necessariamente impedir esse processo, a abstinência passa a ser uma das opções, porém não será a única opção. Já no constructo da “recaída”, a abstinência é a meta sempre buscada, o que torna essa concepção inviável para aqueles que compreendem o uso de drogas como uma possibilidade para as pessoas que não querem ou não podem parar de usar substâncias.


Assim, a recursividade que é “[...] o movimento inerente a todos os seres vivos impulsionando- os para mudanças em seu próprio sistema ou na interação com outros sistemas” (Rameh-de-Albuquerque, 2017, p.22) passa a ser o processo previsto para parte das pessoas que usam drogas em suas possibilidades de ser e estar no mundo.


Outra reflexão reflete sobre alguns aspectos comumente negligenciados pelos profissionais e cuidadores em geral: durante o tratamento, os processos intersubjetivos referentes aos movimentos recursivos das pessoas indicam os aprendizados e ressignificações diante do abuso de drogas, independentemente dos modelos aos quais as instâncias de cuidado estejam filiadas. Por vezes, o tratamento é “zerado” quando a pessoa tem lapsos, recai ou usa novamente a droga.


Caso os profissionais e cuidadores operem à luz da RD, a recursividade passa a ser um princípio ancorado na possibilidade de uso da substância e não da abstinência total, sem que tal questão não faça perder todo o tratamento já investido, realizado ou mesmo as aprendizagens conquistadas, visto que essas poderão fazer sentido a qualquer tempo para a pessoa: “A recursividade acaba por apontar um processo de autoconhecimento, no qual a cada repetição do uso de drogas, a pessoa experimenta outras possibilidades de desfecho para o que está vivenciando” (Rameh-de-Albuquerque e Nappo, 2019, p 154).


Esperamos, de modo ousado, que tais reflexões possam contribuir para a melhoria da atenção prestada às pessoas que buscam tratamento, especialmente quanto à mudança de visão e prática clínica dos profissionais e cuidadores que estão no “corpo a corpo” do cuidado junto às pessoas que abusam das drogas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


  1. Maturana, H. R., & Varela, F. J. (1980). Autopoiesis and cognition: The realization of the living. Reidel.

  2. Morin, M. (2000). Da necessidade de um pensamento complexo. In M. Martins (Org.), Para navegar no século XXI: Tecnologias do imaginário e cibercultura (pp. 1–27). Edipucrs.

  3. Rameh-de-Albuquerque, R. C. (2017). Da pessoa que recai à pessoa que se levanta: A recursividade dos que usam crack [Tese de doutorado, Universidade Federal de São Paulo]. Repositório Institucional UNIFESP.

  4. Rameh-de-Albuquerque, R., & Nappo, S. (2018). Reasons to crack consumption relapse: Users’ perspective. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 67(3), 194–200.

  5. Rameh-de-Albuquerque, R. C., & Nappo, S. A. (2019). Padrão de consumo de drogas com ênfase no crack e a recursividade deste padrão. In P. Fraga & M. C. Carvalho (Orgs.), Drogas e sociedade: Estudos comparados Brasil e Portugal. Letra Capital.


SOBRE AS AUTORAS:


Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque: Redutora de Danos. Psicóloga do IFPE, tutora do Mestrado em Psicologia da Saúde e da graduação em Psicologia da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS). Pesquisadora do GEAD/UFPE. Membro do Intercambiantes, ABRASME, ABRAMD e ABRASCO.


Solange Aparecida Nappo: Farmacêutica. Docente do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo e pesquisadora do CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, Departamento de Ciências Farmacêuticas.

 
 
 

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