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Foto do escritorMaria de Lurdes Zemel

CASTELO DE VIDRO (2017) - COMENTÁRIO

Novidade no site do Coletivo Intercambiantes Brasil! Leia a primeira publicação da seção de COMENTÁRIOS SOBRE FILMES! O primeiro comentário, escrito por Maria de Lurdes Zemel sobre o filme Castelo de Vidro, aborda reflexões sobre a intrincada interseção entre arte, filosofia e ciência. O texto foi estruturado com o objetivo de analisar trajetórias de vida e destacar a importância da transmissão inter-relacional na elaboração de traumas e na ressignificação de vivências. Essa abordagem culmina em importantes lições sobre o complexo e multifacetado campo da psicopatologia. Acesse, leia, comente e compartilhe!



Inicio falando uma poesia de Carlos Drummond de Andrade que se chama “Especulações em Torno da Palavra Homem”:


Mas que coisa é homem,
que há sob o nome:
uma geografia?

um ser metafísico?
uma fábula sem
signo que a desmonte?

Como pode o homem
sentir-se a si mesmo,
quando o mundo some?

Como vai o homem
junto de outro homem,
sem perder o nome?

E não perde o nome
e o sal que ele come
nada lhe acrescenta

nem lhe subtrai
da doação do pai?
Como se faz um homem?

[...]

Quanto vale o homem?

Menos, mais que o peso?
Hoje mais que ontem?
Vale menos, velho?

Vale menos, morto?
Menos um que outro,
se o valor do homem

é medida de homem?
Como morre o homem,
como começa a?

[...]

Quando dorme, morre?
Quando morre, morre?
A morte do homem

[...]

Por que morre o homem?
Campeia outra forma
de existir sem vida?

Fareja outra vida
não já repetida,
em doido horizonte?

Indaga outro homem?
Por que morte e homem
andam de mãos dadas

e são tão engraçadas
as horas do homem?
Mas que coisa é homem?

Tem medo de morte,
mata-se, sem medo?
Ou medo é que o mata

[...]

Por que vive o homem?
Quem o força a isso,
prisioneiro insonte?

Como vive o homem,
se é certo que vive?
Que oculta na fronte?

E por que não conta
seu todo segredo
mesmo em tom esconso?

Por que mente o homem?
mente mente mente
desesperadamente?

Por que não se cala,
se a mentira fala,
em tudo que sente?

Por que chora o homem?
Que choro compensa
o mal de ser homem?

Mas que dor é homem?
Homem como pode
descobrir que dói?

Há alma no homem?
E quem pôs na alma
algo que a destrói?

[...]

Como quer o homem
ser destino, fonte?

Que milagre é o homem?
Que sonho, que sombra?
Mas existe o homem?

[A vida passada a limpo]

Este filme foi baseado em um livro da escritora Jeannette Walls.



 No final do filme aparece o depoimento dos familiares reais.

 

Sim, essa é a história de todos nós!

 

Temos que sofrer, enfrentar, superar, compreender... as dores da nossa herança, dos nossos antepassados para seguirmos com nossa vida.

 

Superar uma avó perversa, um pai dependente de álcool, uma mãe louca.

 

Suportar viver nos dá força para suportarmos as adversidades sociais e políticas que vivemos no nosso país.

 

Jeanette sabe disso e diz para os irmãos “nós temos que cuidar de nós mesmos... temos que ficar unidos”.

 

Jeanette soube enxergar o outro e sabe que precisamos do outro para fortalecermos nosso caminho.

 

Sim, precisamos fazer a separação dos nossos pais e cuidar da própria vida, a vida nos prepara para isso... andamos sozinhos... pensamos sozinhos...

 

Jeannette se ligou aos irmãos Lori, Brian e Maureen, e assim todos puderam se fortalecer.

 

Fazer essa ligação facilita a percepção hierárquica e consequentemente a separação sem que haja incesto.

  

Mas às vezes algo nos prende, não nos deixa efetivar essa separação. Esse algo eventualmente pode ser uma droga ou uma experiência terrível na nossa vida como um abuso.

 

No nosso filme temos os dois ingredientes: a droga e o abuso.

 

Joshua Durban, um psicanalista que trabalha na Sociedade Psicanalítica de Israel, tem um trabalho muito interessante com crianças abusadas. Ele define abuso como “[...] maus tratos a crianças menores de 18 anos por genitor, cuidador... é tudo que cause lesões ou coloque a criança em risco de dano físico, ou psicológico”.

 

Nos diz ainda Joshua: "o perpetrador ataca a criança enquanto representante do que não consegue tolerar em si. É a tentativa de “aniquilar a infância”. [...] A criança vítima de abuso sofre uma catástrofe interna em que os limites normais desmoronam... confiança, esperança... são substituídos por violência e desespero. [...] por meio de uma cadeia de identificações malignas transmite-se o abuso transgeracional" (quero aqui destacar a transgeracionalidade).

 

Vou aqui usar as palavras de Ana Rosa Tracheberg “[...] na transgeracionalidade as transmissões são inconscientes e poderão ser determinantes de patologias de gerações seguintes”.

 

A transmissão pode ser transgeracional e interrelacional – a interrrelacional é estruturante... ajuda o indivíduo a se localizar em relação às gerações passadas.

 

Continuando, “[...] a transmissão transgeracional é invasiva e costuma estar relacionada a situações de traumas, lutos, violências (pessoais ou sociais), e vergonhas presentes e/ou passadas. Ela é potencialmente desestruturante para a geração receptora, pois não há circulação de palavras e afetos. Predominam em seu lugar, o silêncio e o segredo [...]”. Para esse sujeito (Rex-pai) torna-se intolerável lembrar, rememorar, sentir, sonhar ou falar... A resultante a qual é a não elaboração do trauma, abre caminho para a transmissão inconsciente de tais vivências e a repetição transgeracional... O filho deixa de ser um herdeiro e passa ser um escravo dos produtos tóxicos dos pais.

 

Freud, em 1930, nos disse que o sofrimento nos ameaça a partir de 3 lados: do nosso próprio corpo fadado ao declínio e a dissolução; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, finalmente, com nossas relações com outros seres humanos. O sofrimento que se origina desta última fonte talvez seja mais doloroso para nós do que qualquer outro.

 

Esta família nos mostra uma gama de possibilidades de abusos (abuso sexual da avó, abuso dos pais pela queimadura, falta de comida, inconstância de moradia) e de propostas de relações com a vida.

 

Joshua ainda nos diz que o sonho e a brincadeira são a via de acesso para as crianças vitimadas recordarem, repetirem e elaborarem o trauma e que só através da continência de um outro conseguimos isso – outro que faça essa continência interna e externa. Esse outro não poderá ser fraco, não pode esmorecer... a vítima não poderá aniquilá-lo.


Tem que ser um continente seguro, uma “companhia viva”, como nos diria Anne Álvares.

 

Na casa da avó as crianças conhecem um pouco da história do pai... “É impossível respirar quando se está afundado na merda”, diz um escrito de Rex.



Rex tinha alguma noção do que havia recebido e talvez essa noção ajudou aos seus filhos usufruírem de uma transmissão interelacional. Juntos na mesa, eles recordam do que receberam do pai... as estrelas de presente.

 

Lá eles vivenciam o abuso sexual e aprendem que juntos conseguirão vencer, mas também aprendem que este é um assunto que não pode ser falado.

 

Jeanette não consegue se livrar das suas coisas encaixotadas, vive como se fosse precisar sair... como quando era criança.

 

Em muitas etapas da vida, ela e o pai fazem rituais de enfrentamento ao demônio (são lindas essas cenas).

 

Ela compreende o pai, se identifica com ele... ele é o grande demônio da vida dela.

 

Ela diz: “sou igual a você e gosto disso” e ele conclui que o demônio está dentro dele.

 

A mãe (Rose) nos disse: “[...] o vento castiga essa árvore desde que ela nasceu, mas ela se recusa a cair. É a luta que dá a ela sua beleza”.

 

Rose era verdadeiramente companheira de Rex: sonhava como ele (produzia quadros e mais quadros e não fazia nada com eles); suportava suas bebedeiras; aceitava a proposta de desintoxicação.

 

Mas, não cuidava dos filhos... não sabia cuidar deles e mesmo tendo uma fortuna herdada, vivia na miséria, sem ter o que comer.

 

Rex – o pai com todas as suas dificuldades parece ter feito alguma elaboração do abuso sofrido pela mãe, mas seu irmão parece não ter tido a mesma sorte.

 

Porém, ele não podia se separar dos filhos... para quem ele construiria o castelo se eles forem embora? Isso romperia a efetivação do seu delírio.

 

Aí a importância da família no tratamento dessa psicopatologia.

 

Rex sonhava? Delirava? Alucinava? Ou fazia uma alucinose?

 

Estou aqui chamando de sonho não a nossa produção inconsciente, mas os projetos que podemos traçar para nossas vidas - Jeanette e seus irmãos sonhavam… lutavam e faziam entre si a continência necessária para sobreviverem aos abusos que sofreram dos próprios pais.

 

  • Alucinação - é uma percepção de coisas que não estão lá (Dalgalarondo, 2019).

 

  • Delírio - segundo Erika Mendonça, são crenças irrefutáveis (Dalgalarondo, 2019).

 

  • Alucinose – é um estado psíquico presente na “personalidade psicótica” que consiste em um tipo de transformação que distorcem a percepção da realidade (Bion, segundo Zimermman).

 

Leopoldo Fulgêncio, um psicanalista brasileiro, no seu trabalho “Abandono, desespero e ódio: o ovo, o coração e a cabeça da serpente” usando Winnicott e falando sobre a atitude antissocial nos diz que essa atitude “[...] é uma tentativa desesperada, de fazer com que o ambiente volte a ser confiável, requisitando e culpando o ambiente pela quebra e aflição sofrida [...]”.

 

Este é um filme denso, importante, uma grande lição de psicopatologia.

 

Minha fantasia era que se esperava de mim uma fala sobre o alcoolismo e sobre a dinâmica desta família – minhas especialidades.

 

O que pretendi, foi mostrar que precisamos pensar em muitos aspectos quando lidamos com essa psicopatologia (como qualquer outra) e que podemos chegar naquilo que interessa ao nosso cliente e a nós mesmos com muitos caminhos, sendo que o caminho mais difícil é conseguir uma interpelação de confiança e seriedade para podermos construir um trabalho juntos.


Também pretendi mostrar que a psicanálise pensa e considera o ambiente.

 

Encerro com o Pablo Neruda:


Se cada dia cai dentro de uma noite,
Há um poço onde a claridade fica aprisionada,
Há que se sentar a beira do poço das sombras
E com paciência pescar luz caída

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


  1. Alvarez, A. (2020). Companhia viva. Editora Blucher.

  2. Durban, J. O complexo do vitimador e suas vicissitudes no abuso de crianças. Sociedade Psicanalítica de Jerusalem, Israel.

  3. Dalgalarrondo, P. (2019). Psicopatologia e semiótica dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed.

  4. Freud, S. (1930). O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago.

  5. Fulgencio, L. (2023). Abandono, desespero e ódio: o ovo, o coração e a cabeça da serpente. IDE, 45(75), 2023, p. 119-139.

  6. Trachtemberg, A. R. Transgeracionalidade, o que é isso? ABP Notícias, Ano IX, 34, Rio de Janeiro, Outubro de 2007.

  7. Zimmerman, D. (2004). Bion: Da teoria à prática - Uma leitura didática. Porto Alegre: Armet.



 

SOBRE A AUTORA:


Maria de Lurdes Zemel: Psicanalista e Terapeuta de Famílias. Membro do Coletivo Intercambiantes BR - Núcleo São Paulo.

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