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AS QUALIDADES FUNDAMENTAIS DO PSICOTERAPEUTA: ENTRE CLARICE LISPECTOR, RILKE E CALLIGARIS

Atualizado: há 3 dias

Introdução


A formação do psicoterapeuta não se resume ao domínio técnico ou ao acúmulo de conhecimento teórico. Mais do que aplicar protocolos, trata-se de sustentar uma posição existencial que envolve autenticidade, coragem, escuta e resiliência. Nessa tarefa, é importante estabelecer um diálogo entre literatura, poesia e psicanálise. De um lado, Clarice Lispector, em A Paixão Segundo G.H. (1964), nos convida a enfrentar o que há de mais inquietante e repulsivo em nós mesmos, metáfora para o confronto do terapeuta com seus próprios fantasmas. De outro, Rainer Maria Rilke, em suas Cartas a um Jovem Poeta (1903-1908), e Contardo Calligaris, em Cartas a um Jovem Analista (2004), oferecem conselhos existenciais que iluminam a prática clínica: autenticidade, paciência, escuta e a vida como matéria-prima. A seguir, essas perspectivas são articuladas para delinear quatro dimensões fundamentais da prática psicoterapêutica.


A coragem de enfrentar a própria sombra


Clarice Lispector descreve a cena perturbadora de G.H., que, ao esmagar uma barata, percebe que só poderá compreender sua própria existência se tiver a coragem de “ingerí-la”. Esse gesto simbólico traduz a exigência do terapeuta de confrontar suas zonas de sombra, aquilo que Freud (1919) denominou o estranho (Das Unheimliche). O paciente, ao narrar seu sofrimento, convoca o terapeuta a revisitar seus próprios medos e recalques. Lacan (1959-1960) dirá que a ética da psicanálise consiste em não ceder diante do desejo, sustentando o encontro com o que há de mais inquietante. Bion (1962), por sua vez, lembra que só pode conter o sofrimento do outro aquele que aprendeu a metabolizar o seu próprio. A coragem, portanto, é o fundamento da posição clínica: aceitar que o trabalho terapêutico implica atravessar tanto a dor do paciente quanto a própria.


Autenticidade e a vida como matéria-prima


Rilke insiste com seu jovem poeta que a criação só pode nascer de uma necessidade interior: 'Entre em si. Investigue o fundamento que o compele a escrever'. Calligaris, em tom irônico, ecoa essa lição ao dizer que o analista não deve imaginar-se modelo de perfeição, mas sujeito que faz de sua vida, com suas contradições, material de trabalho. Ambos apontam que não há escuta verdadeira sem autenticidade. O psicoterapeuta não pode se refugiar em respostas prontas ou na autoridade técnica; deve colocar-se inteiro na relação, inclusive com suas fragilidades. Assim como o poeta transforma sua experiência em arte, o terapeuta transforma sua experiência vivida em instrumento clínico, não para oferecer certezas, mas para acolher a complexidade do humano.


Escuta, solidão e história coletiva


Rilke enaltece a solidão como espaço de maturação interior. O psicoterapeuta, de modo análogo, deve suportar o silêncio e a suspensão do saber, abrindo-se à palavra do paciente sem pressa de interpretar. Calligaris enfatiza que escutar é sustentar a ambiguidade, deixando que o sujeito se confronte com seus enigmas. Mas a escuta não se limita ao intrapsíquico. Freud (1921), em Psicologia das Massas e Análise do Eu, e Pichon-Rivière (1971), em sua teoria do vínculo, lembram que cada história individual se inscreve em uma trama coletiva: família, classe, comunidade, cultura. A clínica exige, portanto, um ouvido afinado não apenas para o singular, mas também para os determinantes sociais que atravessam cada sujeito. O terapeuta é, assim, guardião do silêncio interno que permite escutar — e intérprete do laço social que constitui cada existência.


Paciência e resiliência: o tempo da clínica


Rilke adverte que a poesia exige tempo e maturação: 'Tudo está em deixar amadurecer e, depois, dar à luz'. Calligaris acrescenta que a formação do analista é interminável, feita de erros, acertos e contínuo aprendizado. Ambos sublinham a necessidade de paciência: não há atalhos para a criação nem para a clínica. Essa paciência pode ser ilustrada pela metáfora do torcedor do Santa Cruz Futebol Clube, que sustenta a esperança de recuperação de seu time, esteja ele na Série A ou na Série D. O terapeuta, do mesmo modo, deve acreditar na capacidade de reinvenção do paciente, mesmo quando tudo parece perdido. Freud (1914) mostrou que a mudança só ocorre ao atravessar a repetição dolorosa, e Bion (1962) nomeou essa confiança de fé: manter-se ao lado do paciente até que o pensamento possa emergir. A paciência, aqui, é inseparável da resiliência: acreditar no outro quando ele não consegue acreditar em si mesmo.


Conclusão


A leitura cruzada de Clarice Lispector, Rilke e Calligaris, articulada com os referenciais psicanalíticos, permite delinear as qualidades fundamentais do psicoterapeuta: - Coragem para enfrentar as próprias sombras (Lispector, Freud, Lacan, Bion). - Autenticidade para transformar a própria vida em matéria de trabalho (Rilke, Calligaris). - Escuta enraizada no silêncio e atenta à inscrição coletiva do sujeito (Rilke, Calligaris, Freud, Pichon-Rivière). - Paciência e resiliência para sustentar a temporalidade do processo clínico (Rilke, Calligaris, Freud, Bion, metáfora do Santa Cruz). Essas dimensões mostram que a prática psicoterapêutica ultrapassa o domínio técnico: trata-se de uma arte ética e existencial, que exige do terapeuta não apenas conhecimento, mas uma disposição de vida. Se para Rilke a arte nasce da interioridade, e para Calligaris a análise é a arte de sustentar o desejo e a dúvida, ambos convergem para a mesma lição: o psicoterapeuta não é um detentor de respostas, mas um companheiro na travessia das incertezas.

REFERÊNCIAS:


  1. Bion, W. R. (1991). Aprendendo com a experiência. Imago.

  2. Calligaris, C. (2004). Cartas a um jovem analista. Companhia das Letras.

  3. Freud, S. (1996). O estranho (1919). In Obras completas (Vol. XVII). Imago.

  4. Freud, S. (1996). Psicologia das massas e análise do eu (1921). In Obras completas (Vol. XVIII). Imago.

  5. Freud, S. (1996). Recordar, repetir e elaborar (1914). In Obras completas (Vol. XII). Imago.

  6. Lacan, J. (1988). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959–1960). Jorge Zahar.

  7. Lacan, J. (1998). Escritos. Jorge Zahar.

  8. Lispector, C. (1964). A paixão segundo G.H. Rocco.

  9. Pichon-Rivière, E. (1971). O processo grupal. Martins Fontes.

  10. Rilke, R. M. (2001). Cartas a um jovem poeta. L&PM.


SOBRE O AUTOR:


Evaldo Melo de Oliveira: Psiquiatra e psicanalista pela Sociedade Psicanalítica do Recife (SPR), filiada à Associação Internacional de Psicanálise (IPA). Residência médica pela AEB – Clínica Pinel/PA. Especialização em Clínica Psiquiátrica pela UFRS. Especialista e pesquisador na área de álcool e outras drogas. Diretor técnico do Instituto RAID (Instituto Recife de Atenção Integral às Dependências).

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