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PENSAR AS DROGAS DESDE O SUL: PROVOCAÇÕES PARA DESNORTEAR UM DEBATE

“Precisamos deixar de ser o que não somos, de emular eternamente as respostas de nossos colonizadores, reconhecendo que existem outras alternativas, que possam nos permitir Bem Viver com as Drogas, aliando redução de danos, antiproibicionismo e decolonialidade”. Com essa preciosa frase, André Pimenta de Melo encerra seu texto para o nosso Blog.


O texto “PENSAR AS DROGAS DESDE O SUL: PROVOCAÇÕES PARA DESNORTEAR UM DEBATE” apresenta a noção de Colonialidade e nos convida a uma reflexão muito interessante.


Vale ler e discutir com André através do seu comentário no Blog.


Boa leitura!


Imagem: América Invertida – Joaquín Torres García (1943).


PENSAR AS DROGAS DESDE O SUL: PROVOCAÇÕES PARA DESNORTEAR UM DEBATE[1]


Como podemos repensar as Políticas de Drogas considerando as questões decolonais ? Como a crítica ao Proibicionismo e à defesa do Antiproibicionismo podem ser repensados considerando a história Moderna-Colonial ? Este texto busca refletir sobre estas e outras questões, propondo um diálogo entre diferentes campos do saber.


Muitos são os termos que ganham força no debate contemporâneo denunciando a hegemonia teórica e política do Norte Global: Anticolonial; Pós Colonial; Decolonial; Contra Colonial. Diversos são os projetos que colocam o eurocentrismo em jogo em suas variadas dimensões. Sem negar as divergências entre essas diferentes perspectivas do Sul Global, pretende-se aqui caminhar entre eles para pensar nossa política de drogas desde um lugar específico dentro da geopolítica de longa duração da Modernidade: desde abjo[2]; desde sua faceta negada, a Colonialidade.


A noção de Colonialidade é elaborada pelo sociólogo peruano Anibal Quijano no final de sua longa carreira, marcado por um exílio político durante o governo de Juan Velasco Alvarado, pela fundação do Movimento Revolucionário Socialista (MRS), pelo trocas intelectuais dentro da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e da Teoria da Dependência, um dos temas teóricos de sua carreira, junto com suas pesquisas sobre José Carlos Mariátegui e a identidade andina. Infelizmente, Quijano, como é de costume com os intelectuais latino-americanos, é tratado muito mal dentro de nossas universidades, se tornando uma nota de rodapé, ou uma citação genérica sem que se tenha a curiosidade de saber mais sobre sua obra e vida.


A noção de Colonialidade envolve uma perspectiva curiosa: ela não se encaixa perfeitamente dentro do escopo de nossas tradicionais disciplinas acadêmicas de matriz europeia (Grosfoguel, 2008). Não é possível dizer que ela é uma noção restrita ao campo econômico ou cultural ou da subjetividade, por exemplo. Assim, embora ela diga respeito a um conjunto de ideias, epistemologias e formas de compreender o mundo, ela não se reduz a isso, e envolve também formas de organização do trabalho, a divisão entre o centro e a periferia dentro do capitalismo, as formas de organização interestatal entre as nações, entre outros elementos concretos que organizam nossa realidade. Reduzir a Colonialidade a uma discussão epistemológica é tomar a parte pelo todo e se arriscar a cair numa perspectiva culturalista. Nem culturalista, nem economicista, a Colonialidade diz respeito a um padrão mundial de poder marcado pelo capitalismo e pelo eurocentrismo, estruturado mundialmente desde nossa fundação moderna/colonial (Quijano, 2009).


O Quijano e outres intelectuais denunciam que não existe Modernidade sem Colonialidade; que não existe desenvolvimento intelectual, social e econômico desvinculado dos processos históricos concretos de exploração, opressão e controle dos povos Americanos, Africanos, Asiáticos e Oceânicos. Processos estes marcados pela construção de hierarquias raciais envolvidas com uma divisão racial do trabalho, uma divisão internacional entre os diferentes povos e nações, onde dentro de um mesmo sistema, num mesmo momento, convivem formas de exploração do trabalho livre e assalariadas entre os trabalhadores brancos na Europa, no centro do capitalismo, e formas de exploração escravas do trabalho para as populações negras e indígenas das américas, na periferia desse sistema (Quijano, 2005).


A estruturação dessas relações modernas/coloniais não passa longe da história das drogas. Como coloca Carneiro (2018), as drogas foram um elemento central na estruturação da economia capitalista moderna. Muitas das chamadas especiarias, seriam hoje denominadas substâncias psicoativas e muitos dos empreendimentos econômicos europeus no Novo Mundo envolveram a produção de drogas como o tabaco, o café e a aguardente. Dando um grande salto histórico, hoje também percebemos que muitas das principais drogas ilícitas (cannabis, coca e ópio) são produzidas em regiões periféricas e semiperiféricas, em antigas colônias, em regiões de populações não europeias e não brancas. Muitas dessas drogas são drogas agrícolas; drogas do Sul Global alvos de uma retórica belicosa que sustenta uma cruzada genocida conhecida como Guerra às Drogas.


Essas drogas do Sul Global são vistas de forma muito diferente daquelas produzidas pela indústria farmacêutica. Drogas estas patenteadas por grandes monopólios, por empresas capitalistas e imperialistas que invadem os mercados globais com a anuência dos Estados Nacionais. Drogas estas do Norte Global, lícitas, prescritas com autorização médica e farmacêutica. Drogas inseridas em outras cadeias produtivas, vistas segundo outras cadeias simbólicas. São panaceias, pílulas milagrosas, objetos de cura e salvação. Distintamente, as drogas agrícolas do Sul foram alvo de processos de moralização, medicalização e criminalização, se tornando sinônimo de pecado, doença e crime.


Defendo que devemos manter nossas críticas à indústria farmacêutica, adicionando, que desde uma perspectiva decolonial, precisamos indicar que esta é também uma indústria capitalista e imperialista sediada no Norte Global. Assim, se a lógica proibicionista-medicalizante (Neto et al., 2016) elege algumas drogas como flagelo da humanidade, ela também elege outras como sua salvação. Dessa forma, esta lógica não apenas diz que a maconha dos negros, indígenas e mexicanos, o ópio dos chineses e a cocaína andina são objetos demonizados, maculados, incapazes de trazer qualquer benefício, mas fala também que a medicina branca, industrialmente produzida e muito bem patenteada é a promessa de redenção de nossas mazelas.


Conjuntamente é preciso reconhecer que os processos de moralização, medicalização e criminalização que edificam o proibicionismo se ancoram, seja nos EUA ou no Brasil, numa matriz do poder mais ampla e mais antiga, a matriz da Colonialidade. Uma matriz de longa duração, que envolve uma memória larga, que remete ao nascimento da Modernidade. Nessa direção, a Guerra às Drogas não inventa o racismo, mas cria “novas embalagens para antigos interesses”, nutrindo, portanto, uma estrutura já existente que ditava qual era ‘a carne mais barata do mercado’. Parafraseando um famoso intelectual brasileiro, ela joga mais água no moinho de gastar gente conhecido como Colonialidade.


Se a noção de Colonialidade ajuda a repensar antigos problemas, ela também pode ajudar a repensar nossos horizontes de ação. E nesse sentido ela ajuda a tecer uma provocação ao campo antiproibicionista. Será que ao nos nortearmos nas experiências bem sucedidas de Europeus e Norte Americanos (Ianques e Canadenses), não estamos ignorando nosso lugar, e o deles, dentro dessa ordem global? Será que não estamos esquecendo que o que permite, por exemplo, o Estado de Bem Estar europeu é a transferência de riqueza advinda da periferia do Capitalismo? Será que não estamos esquecendo que vivemos em países economicamente e culturalmente dependentes que transferem riquezas para estes centros? Será que não precisamos repensar essa “civilização” que tanto adoramos e suas condições de possibilidade?


Nessa direção, é preciso reconhecer que nossa realidade é muito mais próxima daquela descrita por Fanon (2005) em “Os Condenados da Terra” do que das luzes de Paris ou da boemia de Amsterdã. Vivemos em uma sociedade que conserva a divisão entre a cidade do colonizador e do colono, da cidade europeizada e da cidade subalternizada, da cidade onde o Estado garante direitos e a cidade onde ele viola. Aquilo que Mc Kawex aponta quando canta que “São Paulo à Noite, O Mundo se Divide em Dois“. Ou seja, este mundo, mundo cindido, obra da lógica colonial/moderna. Essa realidade, do capitalismo dependente e periférico, não pode sumir de nossas análises quando pensamos sobre os processos de legalização ou produção, distribuição, comercialização e consumo de drogas. Se esquecermos qual o nosso lugar dentro da divisão internacional/racial do trabalho, podemos nos iludir pensando que vivemos em um país do centro do capitalismo, em alguma antiga metrópole imperialista que vive ainda hoje da transferência de riqueza e da exploração do trabalho oriundo de regiões muito além de suas fronteiras nacionais.



Partindo dessa perspectiva, percebemos que não existem as Luzes de Paris sem os horrores da Martinica ou da Argélia. Não existe a boemia de Amsterdã sem a Indonésia ou o Suriname. Não existe o desenvolvimento intelectual, político e econômico das metrópoles sem suas colônias, e isto talvez explique porque estes “avanços civilizacionais” nunca conseguiram cruzar o Atlântico ou até mesmo o Mediterrâneo.


Assim, aos que preferem manter a imagem idílica de um Antigo Mundo sacralizado, sinto ter que concordar com Aimé Césarie (2010): A Europa é Indefensável. Precisamos deixar de ser o que não somos, de emular eternamente as respostas de nossos colonizadores, reconhecendo que existem outras alternativas, que possam nos permitir Bem Viver com as Drogas, aliando redução de danos, antiproibicionismo e decolonialidade.


 

[1] As reflexões deste pequeno texto são oriundas da dissertação “Pensar às Drogas desde o Sul: Uma crítica decolonial ao Proibicionismo”, orientada pelo Prof. Dr. Luís Fernando Tofoli e coorientada pela Prof. Dra. Juliana Luporini do Nascimento, no Programa de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (2022). [2] A expressão desde abjo, muito utilizada por autores decoloniais e latino-americanos, indica uma perspectiva que pensa o mundo a partir dos oprimidos, dos excluídos e explorados. Dessa forma assume-se uma postura anti hegemônica, contrária a ideologia dominante liberal e eurocêntrica. Em oposição a uma perspectiva do alto, isto é, da elite global, dos centros do capitalismo, do Norte Global, uma perspectiva desde abjo reconhece o outro lado desta história, daqueles preteridos pelos “avanços” civilizatórios da modernidade.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


Carneiro H. (2018). Drogas: a história do proibicionismo. São Paulo: Autonomia Literária.


Césaire, A. (2010). Discurso sobre o colonialismo. Florianópolis: Letras Contemporâneas.


Fanon F. (2005). Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora da UFJF.


Grosfoguel R. (2008). “Para descolonizar os estudos de economia politica e os estudos pos-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e Colonialidade global”. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, 115-147.


Neto, J. A. B. et al. (2016). Figuras e facetas da lógica proibicionista-medicalizante nas políticas sobre drogas no Brasil. Rev. Polis e Psique, 6(3), 59-76.


Quijano, A. (2005). Colonialidade de poder e classificação social. In B. S. Santos & M. P. Meneses (Eds.), Epistemologias do Sul (pp. 227-278). Coimbra: Gráfica de Coimbra.


Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Ed.), A Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais (pp. 227-278). Buenos Aires: CLACSO.


 

SOBRE O AUTOR:


André Pimenta de Melo: Psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui Residência em Saúde Mental e Mestrado em Saúde Coletiva pela Faculdade de Ciências Médicas (FCM-UNICAMP). É membro da Coordenação da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (ABRAMD) e do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (LEIPSI).

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