PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA E SUAS BATALHAS PARA SEREM TRATADAS COMO SERES HUMANOS
- Márcia Maria Regueira Lins Caldas
- 18 de jun.
- 4 min de leitura
Vidas dignas, livres e inclusivas só é possível em uma sociedade antimanicomial!
E até quando o Estado negligenciará o cuidado das pessoas em situação de vulnerabilidade?!
O descaso do Estado com a falta da implementação de políticas públicas para pessoas em situação de rua vai matando subjetivamente e objetivamente as pessoas. A morte faz parte do cotidiano desse grupo populacional pela ausência de gestão, porém ela não pode ser naturalizada.
O que as pessoas arriscam quando se encontram na rua? O que temem diante de tantas ausências e perdas?
“Tenho medo de gente e de solidão
Tenho medo da vida e medo de morrer
Tenho medo de ficar e medo de escapulir
Medo que dá medo do medo que dá
Tenho medo de acender e medo de apagar
Tenho medo de esperar e medo de partir
Tenho medo de correr e medo de cair
Medo que dá medo do medo que dá
O medo é uma linha que separa o mundo
O medo é uma casa aonde ninguém vai
O medo é como um laço que se aperta em nós
O medo é uma força que não me deixa andar
Tenho medo de gente e de solidão
Tenho medo da vida e medo de morrer
Tenho medo de ficar e medo de escapulir
Medo que dá medo do medo que dá
Tenho medo de acender e medo de apagar
Tenho medo de esperar e medo de partir
Tenho medo de correr e medo de cair
Medo que dá medo do medo que dá
O medo é uma linha que separa o mundo
O medo é uma casa aonde ninguém vai
O medo é como um laço que se aperta em nós
O medo é uma força que não me deixa andar….”
(Miedo - Lenine)
Relato da agonia vivenciada por Valéria (nome fictício), que pode também ser o de tantas outras Marias, Antônias, Rosas, Socorros, que passam por situações similares.
Era uma sexta-feira, 9:00 da manhã, quando chegamos ao Setor Comercial Sul (SCS), encontramos Valéria, aparentando muita aflição, aguardando e desejando que sua agonia fosse amenizada pelas pessoas do Coletivo Café com Escuta. Linda mulher negra, trans, que se encontra em situação de rua. Estava sentada em um banquinho, sem forças para levantar e não conseguia andar -nem para ir ao banheiro. Pálida, debilitada, desanimada e com muita dor. Pediu uma cadeira de rodas para se locomover, momento em que a levaram ao banheiro.
Compartilhou ser uma pessoa com sério problema de saúde, estando sem tomar medicação havia tempo.
Os equipamentos e serviços de saúde e assistência social que atuam no território tentaram, sem sucesso, resolver a situação.
Tentou-se ajudar Val a ser acolhida, internada em uma emergência de um hospital, pelo estado debilitado que se encontrava.
Em seguida, uma pessoa de uma Organização Não Governamental- ONG, situada no SCS, levou-a de cadeira de rodas, a um hospital que atende emergência, onde também não teve sucesso, sendo informado que só recebiam pacientes com traumas e a levaram para frente dessa organização. Ela se encontrava com muito frio, pediu um colchão para deitar no chão e uma coberta.
Val ficou durante horas estendida e agonizando no chão, em frente à ONG- SCS, até que à tarde foi atendida pela saúde e levada ao hospital.
O resultado obtido no território em relação ao atendimento e a internação de Valéria foi resultado da atuação de uma rede local de pessoas, coletivos, movimentos sociais, ONGs que atuaram no vazio da eficiência do Estado. As instituições que fazem parte da rede de cuidado e proteção para as pessoas em situação de rua precisam ser fortalecidas, através da implementação de políticas públicas intersetoriais, tais como: saúde, assistência social, moradia, educação, emprego e geração de renda e cultura.
Quase todos os equipamentos e serviços, que se envolveram para amenizar a dor de Val, tentaram agir da maneira que foi possível para cada instituição. Salientando que a quase totalidade dos profissionais estão sobrecarregados, sendo a sua maioria excelentes, porém os serviços apresentam dificuldades que precisam ser sanadas. É necessário uma articulação da rede para que os direitos à saúde, à vida e à dignidade possam ser assegurados. Isso só é possível se a rede de atenção e cuidados, tornar- se uma “ rede viva” ( Emerson Merhy, 2024).
O Estado precisa assumir a responsabilidade de cuidar desse grupo de pessoas tão vulnerável, seguindo e implementando algumas normas, tais como: Decreto 7053/12/09-Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências; Lei Nº 6.691/10/20 - Institui a Política Distrital para a População em Situação de Rua, no Distrito Federal; Resolução 40/10/20 do CNDH-Dispõe sobre as diretrizes para a promoção, proteção e defesa dos direitos das pessoas em situação de rua, de acordo com a Política Nacional para População em Situação de Rua; Resolução 425/10/21 do CNJ- institui no poder judiciário política nacional de atenção a pessoas em situação de rua; ADPF 976 /07/23 do STF e outras.
Valéria passou treze dias internada no hospital, porém saiu antes do término do tratamento, com receio de ser presa por ter problemas com a justiça.
História triste e frequente de abandono do Estado com pessoas que se encontram em situação de rua. É possível que o medo de ir para o sistema penitenciário seja maior do que o da morte por problemas de saúde. Talvez, nas ruas, esse medo seja cotidiano e constante, além de já incorporado em sua vida diária.
Medo não é remédio, apenas controla corpos, provoca adoecimentos e vai consumindo a energia necessária para sobreviver e lutar pela vida. É necessário alterarmos essa realidade perversa.
Onde fica o acolhimento e o cuidado para que a pessoa em situação de rua se sinta mais incluída e possa desejar uma vida mais digna, sadia e feliz.
A inclusão só é possível com respeito e amor.
Todas as vidas importam e precisam ser visíveis!
SOBRE A AUTORA:
Márcia Maria Regueira Lins Caldas: Psicóloga Clínica, idealizadora e voluntária do coletivo Café com Escuta em Brasília- DF, onde realiza escuta de pessoas em situação de rua no Setor Comercial Sul-DF desde julho de 2019. Participa enquanto especialista de Comissões e GTs na temática em questão. Servidora pública federal atualmente na Promotoria da Infância e Juventude/MPDFT, assessorando à promoção da garantia dos direitos humanos das crianças e adolescentes na temática da saúde mental, assim como as que se encontram em situação de rua.

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