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CAMINHANDO COM FREUD E MARX: UMA EXPERIÊNCIA DE PESQUISA



A psicanálise está inserida no âmbito do direito à saúde e, assim, metida a rol entre os direitos humanos. A formação psicanalítica não pode prescindir dessa abordagem. Psicanalistas não podem abdicar de seu dever de garantir a plenitude da saúde no âmbito da subjetividade e no espectro social e político. É por isso que, no mestrado em Educação da UNICAMP, decidi enfrentar o desafio de pesquisar “Educação, Psicanálise e Direitos Humanos”, mas, especificamente, para estudar “a formação de psicanalistas e as clínicas públicas de atendimento psicossocial no Brasil”. O objetivo é verificar se a psicanálise tem sido praticada como um direito para todas as pessoas e se psicanalistas estão preparados para garantir esse direito com olhar filosófico, compromisso ético e político e rigor epistemológico.


Foi inevitável, então, nos primeiros passos dessa pesquisa, o encontro com Marx. É dele a constatação dos efeitos violentos do sistema capitalista na subjetividade contemporânea. Aliás, para Marx, o objetivo do sistema capitalista é tornar a existência humana uma obsolescência.


Freud foi contemporâneo de Marx. Seguiram eles caminhos diversos, mas, mantiveram o mesmo olhar crítico sobre o humano e a sociedade. Assim, é possível aproximar o marxismo e a psicanálise a partir desse olhar sobre a sociabilidade capitalista, que, nas suas diversas formas de opressão, atua sobre as pessoas, causando impactos econômicos, mas, também, subjetivos.


Marx demonstrou que os seres humanos fazem a sua história, na sua complexidade econômica e cultural, mas, também, no contexto histórico da produção material de bens para a sobrevivência humana, a partir de condições sociais, econômicas e políticas determinantes. Sua teoria, um divisor de águas na filosofia, economia e ciência política, desnudou toda a crueldade do capitalismo e os efeitos violentos desse sistema na subjetividade contemporânea, demonstrando, inclusive, que uma de suas artimanhas é transformar o sofrimento de cada sujeito em uma forma de fraqueza individual. É assim que a depressão, a bipolaridade, a esquizofrenia, as neuroses obsessivas e tantas outras patologias são transformadas em predicados para os fracos e incapazes que não souberam prosperar nem empreender. Esse sistema abdica da ética da preservação da vida humana. As leis de mercado e o fetichismo da mercadoria passam a reger as formas de relações entre as pessoas, afetando diretamente a constituição da subjetividade.


Com relação à violência, Marx vê a sua origem na propriedade privada dos meios de produção. Aliás, Engels (1888/1980) demonstrou como os interesses materiais da burguesia, todos eles relacionados com a produção e a apropriação, guiaram a prática política da “violência a ferro e sangue” (p. 208). Freud, por sua vez, em “Totem e Tabu”, afirma que a origem do vínculo social está no parricídio originário e enfatiza a função imprescindível da violência na constituição do campo social. Ao propor uma "teoria da gênese da cultura e da humanização do homem", ele descreve uma sequência de eventos para demonstrar a transição da humanidade de um convívio social primitivo, marcado pela violência, para o alcance de outro tipo de sociabilidade regulada por um contrato social. No entanto, dois anos depois, em Considerações Atuais Sobre a Guerra e a Morte, o otimismo freudiano foi vencido pela desilusão. A Primeira Guerra Mundial surpreendera a todos, implodindo as ideias de racionalidade e avanço cultural e científico, fragmentando as relações da comunidade dita civilizada e despedaçando qualquer ideal de compreensão e tolerância. A guerra lançou Freud e a Psicanálise em um profundo questionamento sobre o processo de desenvolvimento cultural e a possibilidade da erradicação da violência.


No mesmo espectro investigativo, portanto, a violência pode ser explicada pelas concepções do materialismo histórico-dialético ou, segundo Freud, referindo-se à pulsão de morte, por uma agressividade irredutível, inerente ao ser humano. Essas visões são aparentemente opostas, mas, estão imbricadas nas determinantes históricas que se projetam na subjetividade.


Para Marx, a sociedade constrói a subjetividade. Assim, há de existir condições materiais para que ela seja instaurada. Contudo, no espectro do capitalismo, o trabalho não permite que as pessoas promovam a sua realização pessoal e subjetiva, pois, por ser essencialmente alienado, compromete a subjetividade. O trabalho deveria ser utilizado como instrumento para que o ser humano pudesse estabelecer relações com as suas subjetividades. Mas, sob a lógica capitalista, as pessoas ficam acorrentadas, como Prometeu, aos rochedos da sobrevivência imediata e da subjetividade consumista produzida pelo capital e suas artimanhas ideológicas de dominação e exclusão. O capitalismo almeja a eternização do capital e permite, apenas, a produção de uma subjetividade apática, alheia e distante, para assegurá-la, garantindo a opressão e a alienação para os trabalhadores e, para uma minoria, o lucro e a mais-valia.


Nesse contexto, avulta-se a dimensão da psicanálise e de sua expansão como direito a ser assegurado a todas as pessoas envolvidas nesse projeto capitalista de alienação e construção dessa subjetividade apática e alienada. É preciso, portanto, aprofundar a compreensão sobre as ligações entre psicanálise freudiana e o materialismo dialético. Aliás, Reich (1977) percebeu o caráter revolucionário das descobertas de Freud e trabalhou em uma apropriação dialética da psicanálise pelo marxismo revolucionário.


Há uma complexa relação entre a psicanálise e o marxismo a ser desvendada e estudada. Para Althusser (1984), Freud e Marx construíram um pensamento materialista dialético que os aproxima, apesar do “caráter conflituoso” que marca a relação entre as teorias marxiana e freudiana, o que constitui um estímulo à investigação. Seguirei buscando, portanto, o entendimento das relações entre a psicanálise e a teoria marxista. Essa busca exigirá um olhar crítico sobre os avanços referentes ao campo de estudos psicanalíticos ligados ao social, mas, também com relação aos estudos sociológicos, filosóficos e políticos permeados por um referencial psicanalítico, sobretudo diante dos aspectos contemporâneos das noções de diferença, democracia e liberdade, da discussão sobre os vínculos da intersubjetividade e do estreitamento ou afrouxamento dos laços sociais na contemporaneidade, para que seja mais nítida a compreensão do sujeito do inconsciente como sujeito de direitos, seja na ordem social ou na ordem individual de ser.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


Althusser, L. (1984). Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio de Janeiro, Graal.


Cuellar, D. P., & Lara, N. (2018). Psicanálise e Marxismo: as violências em tempos de capitalismo. Curitiba: Appris.


Engels, F. (2016). O papel da violência na história. Brasília: Iskra/Centelha Cultural.


Freud, S. (2012). Totem e Tabu. São Paulo: Companhia das letras.


Freud, S. (2010). Introdução ao Narcisismo e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras.


Marx, K. (1998). Teses sobre Feuerbach. In F. Engels, A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes.


Marx, K. (2011). O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo.


Marx, K. (1977). Formações econômicas pré-capitalistas. São Paulo: Paz e Terra.


Marx, K. (2012). 18º Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Boitempo.


Marx, K. (2013). Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo.


Reich, W. (1977). Materialismo Dialético e Psicanálise. Lisboa: Presença.


 

SOBRE A AUTORA:


Maria Julia Martins: Psicanalista, Mestranda pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE-UNICAMP).

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