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POR UM OLHAR PARA A DETERMINAÇÃO SOCIAL DO USO DE DROGAS PELA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

Olhamos um homem deitado na calçada, sujo e descoberto.


Ele faz parte do grupo que chamamos PSR (População em Situação de Rua).


Muitas vezes nosso pensamento vai para a ideia de que certamente “está drogado” ou: “é um drogado”.


Weverton, no seu texto apresentado hoje no nosso blog “POR UM OLHAR PARA A DETERMINAÇÃO SOCIAL DO USO DE DROGAS PELA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA” nos mostra muitos aspectos da sua pesquisa e vai “buscando contribuir para a construção de um outro olhar para o uso de drogas pela PSR…”


Leia e comente esse trabalho precioso


A equipe do Blog


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Quando falamos sobre a população em situação de rua (PSR), a relação desse grupo com o uso de substâncias usualmente emerge como um dos principais aspectos a serem visibilizados, seja em âmbito público ou acadêmico. O uso abusivo de drogas é apontado como uma das principais causas autorreferidas da situação de rua em contexto nacional, conforme dados do Cadastramento Único - CADÚnico (IPEA, 2024). Já aqui, é preciso certo cuidado, considerando que em função de estigmas internalizados pela própria PSR, é mais fácil que esses sujeitos atribuam a fatores biográficos e de ordem individual explicações para situação em que se encontram, a despeito de suas trajetórias anteriores de vulnerabilização e da natureza histórica e estrutural dos processos responsáveis pela gênese e expansão desse grupo populacional no Brasil, como a pobreza, a falta de acesso à moradia e a herança colonial do racismo estrutural.


Mesmo diante do conjunto de evidências que indicam a complexidade dessa relação, que provavelmente reflete o efeito de determinações comuns tanto para o uso abusivo quanto para a situação de rua, colocando usuários pertencentes a grupos marginalizados em um risco acentuado de ida para as ruas em primeiro lugar, raramente é questionada a relação direta de causa-efeito estabelecida entre ambos. Igualmente, pouco se discute a maneira pela qual o contexto social e as condições de vida precarizadas desses sujeitos nas ruas influenciam no consumo de drogas. Ou seja, que o uso de drogas pela PSR não pode e nem deve ser o principal aspecto para a compreensão da realidade desse grupo populacional, mesmo quando em foco (Mendes et al., 2021).


Buscando contribuir para a construção de um outro olhar para o uso de drogas pela PSR, trago um pequeno recorte da minha pesquisa de mestrado, realizada no Programa de Pós-Graduação - PPG em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF e orientada pelo Prof. Telmo Ronzani. A pesquisa, de cunho quantitativo, teve como objetivo analisar os fatores associados ao uso diário de drogas nos dados secundários do Censo e Diagnóstico da População Adulta em Situação de Rua de Juiz de Fora (MG) de 2022 (Pereira et al., 2023), discutindo os resultados à luz da tradição latinoamericana da determinação social da saúde (Ronzani et al., 2023).


Os resultados do estudo demonstraram que, apesar de significamente superior ao uso na população em geral, o uso diário não foi um comportamento apresentado pela maior parte da PSR no município para a maioria das substâncias, sendo a prevalência de 52,1% para cigarro, 33,8% para álcool e de 33,1% para drogas ilícitas, incluindo maconha (26,2%), crack (19,9%), cocaína (6,1%) e inalantes (2,4%). Tais resultados também contradizem estigmas que associam diretamente o uso compulsivo de crack e de outras substâncias ilícitas à PSR, dado que foram as substâncias lícitas, e não as ilícitas, as mais consumidas. Contudo, indo além dos dados, a compreensão do uso de drogas e dos problemas associados a esse comportamento entre a PSR carece de outras reflexões. Pois, conforme questiona Mayora (2016, p.151): “o que seria um consumo problemático ou não problemático na vida de quem não tem nada, de quem passa fome, frio e dorme no chão?”.


Mais do que para os riscos à saúde, é necessário direcionarmos o nosso olhar para a função adaptativa desse comportamento no cotidiano da PSR. A literatura aponta como o uso de substâncias constitui uma estratégia de sobrevivência frente às condições adversas e ao sofrimento da vida nas ruas, assim como um modo de vida coletivo capaz de contribuir para o trabalho, pertencimento e obtenção de prazer (Silva et al., 2020). Porém, em função das diversas dificuldades enfrentadas nesse contexto, a situação de rua é concebida como um ambiente de risco para a produção de danos vinculados ao consumo de drogas, não apenas pelo consumo per si, como a transição para padrões mais prejudiciais de uso, exposição à intervenções repressivas e maiores barreiras no acesso ao cuidado. Assim, “como enfrentar o uso abusivo de droga que mata fome, solidão, sofrimento, pensamentos alucinógenos e depressão? Como cuidar do uso de drogas que gera fome, depressão, sofrimentos, perdas afetivas, laborais, financeiras, de saúde e autoestima?” (Brito & Antunes, 2024, p.13).


Na análise multivariada, aspectos como faixa etária mais jovem, presença de menores dependentes, passagem pelo sistema prisional, trabalhar com reciclagem, pedir dinheiro nas ruas e ter sofrido remoção compulsória foram associados com um maior uso diário de drogas entre a PSR em Juiz de Fora. Tomando como referencial a teoria da determinação social da saúde, a partir da qual a saúde da PSR é entendida como resultado das trajetórias e condições precárias de vida e trabalho nas ruas, enquanto condicionadas pela organização social no capitalismo e pelo racismo estrutural, torna-se possível interpretar criticamente esses resultados (Couto et al., 2023). Por exemplo, visibilizando os efeitos da necropolítica no aprofundamento da vulnerabilidade da PSR para além da culpabilização por seus comportamentos, através da sua criminalização e encarceramento, remoções compulsórias e do recolhimento forçado de pertences (Martins & Machado, 2024).


Por outro lado, ter ido para as ruas depois da pandemia, dormir em abrigo e possuir doenças respiratórias foram associados aà menor prevalência do desfecho. Uma possível implicação desses resultados é reforçar o potencial papel exercido pelos abrigos na redução da vulnerabilidade da PSR. No entanto, considerando as limitações desses serviços na promoção da autonomia da PSR e os obstáculos de acesso enfrentados pelos usuários de drogas em situação de rua, destaca-se que o acesso imediato à moradia permanente constitui um direito humano fundamental, cuja garantia é condição essencial para a redução efetiva dos danos do uso de drogas nas ruas e, principalmente, para a superação dessa situação.


Esse entendimento subjaz políticas de Moradia Primeiro, com evidências acumuladas de efetividade internacionalmente e que se encontra na fase de implementação piloto no Brasil (Brasil, 2024). Mas se é indiscutível que a moradia deve vir em primeiro lugar, ela sozinha não basta. Portanto, o acesso e articulação entre as políticas públicas intersetoriais permanece primordial para a construção de outras possibilidades de vida para a PSR, nas quais o uso de substâncias possa vir a ocupar um lugar alternativo.


REFERÊNCIAS:


  1. BRASIL. Portaria Nº 453, de 29 de maio de 2024. Institui o Projeto Moradia Cidadã no âmbito do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Brasília: Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, 2024. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-453-de-29-de-maio-de-2024-563083926 


  2. BRITO, C.; ANTUNES, V. H.. O valor simbólico do uso de droga para população em situação de rua: droga que mata e alimenta. Cadernos de Saúde Pública, v. 40, n. 10, p. e00173323, 2024. https://doi.org/10.1590/0102-311XPT173323


  3. COUTO, J. G. de A; et al.. Saúde da população em situação de rua: reflexões a partir da determinação social da saúde. Saúde e Sociedade, v. 32, n. 2, p. e220531pt, 2023. https://doi.org/10.1590/S0104-12902023220531pt 


  4. IPEA. A População em Situação de Rua nos Números do Cadastro Único. Rio de Janeiro: IPEA, 2024. 53 p. http://dx.doi.org/10.38116/td2944-port


  5. MARTINS, D.; MACHADO, F. V.. Sinergias necropolíticas: notas para a compreensão da segregação espacial da população em situação de rua. Estudos de Psicologia (Natal)[S. l.], v. 29, n. 3, p. 1–12, 2025. https://doi.org/10.22491/1678-4669.20240032 


  6. MENDES, K. T.; RONZANI, T. M.; DE PAIVA, F. S. “Tudo por causa do crack”: um estudo sobre as percepções e sentidos das drogas na população em situação de rua. Estudos de Psicologia (Natal), v. 26, n. 3, p. 311–322, 2021. https://doi.org/10.22491/1678-4669.20210029


  7. PEREIRA, V. S. et al. Censo e Diagnóstico da população adulta em situação de rua em Juiz de Fora - MG: Relatório Final. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2023. Disponível em: https://www.pjf.mg.gov.br/noticias/anexo/censo_pop.pdf


  8. RONZANI, T. M. et al.. Social Determinants and Drug Dependence: Systematic Review of Literature. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 39, p. e39407, 2023. https://doi.org/10.1590/0102.3772e39407.pt


  9. SILVA, A. B. DA; et al. Desvelando a cultura, o estigma e a droga enquanto estilo de vida na vivência de pessoas em situação de rua. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n. 10, p. 3713–3721, out. 2020. https://doi.org/10.1590/1413-812320202510.36212018


SOBRE O AUTOR:


Weverton Corrêa Netto: Psicólogo, Mestre em Saúde Coletiva e Doutorando em Psicologia pela UFJF. Membro do Centro de Pesquisa, Avaliação e Intervenção em Álcool e Outras Drogas (CREPEIA) e do coletivo Intercambiantes.

 
 
 

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